"...parecia querer esconder sua clandestina satisfação."
Noite calada. As calçadas estendiam-se a ele, como fariam a qualquer intruso que se aventurasse desfilar por elas. Nada tinha a mais que os demais, igual a qualquer um, acolhido por seu casaco preto, gasto do tempo. Alguém que se lançava em ruas desertas, para sentir o vento lhe esbofetear a face. Era necessário provar para si próprio que o mundo o desprezava, era preciso esvaziar-se dos vultos, arejar as ideias e de uma vez por todas enterrar Lena.
Curvas sinuosas. Silhuetas femininas. Sentia-se perseguido, por aquela que deveria ser esquecida. Mais a frente, naquela esquina, logo depois de moças que ofertavam seus corpos consumíveis, o putrefato cadáver de um cachorro também se oferecia. Por um instante deteve-se a admirar a carcaça do animal morto, sentia por ele uma aversão terna. Lembrou-se novamente do que deveria esquecer, devaneou sobre a vida do cãozinho, olhou as meretrizes com lasciva odiosidade, e pensou na amizade existente entre homens e bichos, verdadeira, real, tão diferente do sentimento entre homens e mulheres, finito e enganoso.
Um carro velho que passou tocando uma canção mais velha ainda, recobrando-o da festa, e de suas melodias perturbantes. Havia bebido além da conta, mas considerava-se bem. Sentiu ódio em ainda ter nítido em sua mente à devassidão de Lena, a quem ele servira fielmente, e por ela fora descartado como o defunto canino. Enquanto isso, um calor tomou sua face, o ódio a correr nas veias... Ao passo que suas mãos experimentavam ainda aquele pulso a se esvair, seus olhos percebiam com clareza os fracos espasmos de um corpo outrora extasiante, os ouvidos, por sua vez, reviviam a sensação de escutarem o clamor ardente, bramidos que lhe aqueceram a alma, tardios e estranhamente aconchegante.
Fixou os olhos no cadáver novamente, e teve uma estranheza, rui-se, não encontrava mais no morto semelhanças consigo. Aquele cachorro um dia se devotou a alguém, e teve seu trágico fim, porém ele, enquanto homem não. Riu-se por se considerar safo e escondeu o finado cão num saco plástico.
Decidiu, por fim, tornar a casa. A noite já lhe oferecera a solução que precisava. Caminhou por ruelas ainda mais escuras, parecia querer esconder sua clandestina satisfação. Em frente à porta de sua casa deteve-se por um instante, lembrou-se do cachorro morto, do saco plástico que lhe fora dado como cova. Entrou olhou o lastimável e imóvel corpo de Lena e pensou:
_ Cada um tem o fim que merece!
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